Verão.
O período em que o Sol tem mais oportunidades de trazer luz àqueles que se expõem aos seus raios vindos de tão longe. Segue trabalhando incansavelmente, mesmo que por algumas horas do dia pareça que está ausente. Ele ainda está lá, e isso basta.
Um novo dia, uma nova chance. Talvez seja um desses raios que me motivam a escrever hoje.
Que um dia eu seja digno de seus esforços!
Uma tarde na praia
Fim de ano, e como é de costume nessa época do ano, viajamos para visitar a família no interior de São Paulo.
Nasci e cresci em Taubaté, que fica a poucas horas de Ubatuba, no litoral norte do estado. De certo modo posso falar que cresci entre Taubaté e Ubatuba, tendo o mar como o meu “quintal”.
Viajamos para a praia, mais uns dias de Verão em família. Era uma tarde de calor intenso quando decidi entrar no mar.
Me direcionei ao horizonte, com as ondas quebrando contra mim e causando aquela sensação tão comum de desconforto da água fria batendo no peito.
Tentando adiar o momento em que teria de me entregar àquelas águas e acabar com o sofrimento, continuei avançando aos sobressaltos. Até que, encontrando a minha coragem, mergulhei. Fim do sofrimento.
Que água deliciosa!
Como poderia a poucos minutos estar sofrendo tanto e evitando me entregar àquele mar?
Por que não fiz isso logo que senti o impacto das primeiras ondas?
Olhei para trás. Meu pai vinha logo atrás de mim e lutava contra as ondas, a mesma ação dolorosa de querer adiar o inevitável.
– Se você não escolher a água, a água vai escolher você! – gritei, sem saber ao certo de onde essas palavras surgiram.
Logo pensei: existe um aprendizado aqui.
Voltei para casa, e aquele pensamento me acompanhou. Por dias ele continuou retornando como se quisesse que eu o olhasse com mais atenção.
E como o mar insistindo para que eu experienciasse suas águas mais de perto, aqui estou eu refletindo sobre esse pensamento teimoso.
Aquilo que não vemos
Algumas perguntas tomaram forma:
‘‘Por que ao entrar no mar levamos tanto tempo para mergulhar e acabar com nosso sofrimento de ficar nos molhando aos pouquinhos?
‘‘Se geralmente sabemos que vamos passar por isso, por que entramos no mar?
Eu sei, parecem perguntas bobas. Porém, percebi que havia uma certa profundidade escondida nessas perguntas tão simples, e ao ampliar seu contexto para a vida, conseguimos tirar reflexões importantes.
1. Sair da zona de conforto é angustiante
Partimos de um contexto conhecido: secos, em terra firme e aquecidos.
E vamos para um contexto desconhecido: molhados, oscilando na água e com frio.
Nossa zona de conforto é nossa área de atuação, uma zona segura, conhecida, controlada e limitada.
A zona de conforto é limitada ao espaço. Se estamos fora da água por um tempo, nos adaptamos a esse ambiente; da mesma forma, nos adaptamos à água ao passar um período imersos nela. A passagem de um ambiente para outro é desconfortável. Não podemos estar dentro da água e fora da água ao mesmo tempo, portanto a zona de conforto é limitada ao espaço.
A zona de conforto é limitada ao tempo. A nossa memória é a responsável por reter uma porção do tempo em nós. Podemos ter entrado no mar várias vezes na vida, mas se ficamos um tempo sem entrar novamente e se não recordamos da experiência em si, ao repeti-la, ela será angustiante de novo. Um surfista que mora na praia provavelmente não vai sofrer ao entrar na água todos os dias para surfar. Por manter essa lembrança da experiência constante na memória, sua zona de conforto abrange essa porção do tempo.
E essa zona de conforto não se restringe as sensações experimentadas pelo nosso corpo físico, mas também existe nas nossas emoções e nos nossos pensamentos.
Quando um relacionamento amoroso não está indo bem, por exemplo, ainda podemos estar convivendo com o outro, mas o amor do outro já não está mais presente no nosso espaço emocional, e isso gera angústia e sofrimento. Outro exemplo acontece quando guardamos mágoa de alguém. Perdoar significa se ver livre desse peso com o qual nos acostumamos a conviver e que faz parte da nossa zona de conforto emocional, abrir mão desse ressentimento é sofrido.
No plano mental, criamos fantasias e passamos a viver nesse mundo ilusório. A ilusão passa a ser nossa zona de conforto mental. Desenvolvemos expectativas em relação às pessoas e acontecimentos que, quando não são realizadas, nos força a sair da zona de conforto ilusória para a realidade, porém, não sem sofrimento.
Parece ser inevitável, ao sair da zona de conforto experimentamos uma dose de sofrimento passageira.
2. A consciência nasce do contraste
A sensação mais desagradável ao entrar no mar é sentir aquela água fria contra o corpo. É interessante observar que não temos consciência da temperatura do nosso corpo até ter contato com a água. Para nós, a água está fria, mas para a água, é o nosso corpo que está quente.
Ao entrarmos na água reconhecemos que a temperatura existe. O contraste entre o quente e o frio nos permite adquirir o conhecimento da sua existência. Agora tomamos posse de um aspecto de nós mesmos: a temperatura do nosso corpo. Em outras palavras, adquirimos mais consciência.
Considere essa imagem:
E se eu te dissesse que os dois lados da imagem tem o mesmo desenho?
A diferença entre os dois lados é que o desenho da esquerda está em tinta branca e o da direita em tinta preta.
O contraste do preto com o fundo branco é o que nos permite reconhecer que o desenho existe, e a partir dele chegar a uma série de conclusões: é o desenho de uma abelha, ela está sorrindo, provavelmente foi desenhada por uma criança, etc.
Não seria essa a função dos constrastes? Permitir que ampliemos o nosso conhecimento?
Ao sairmos das nossas zonas de conforto, entramos em contato com contrastes.
Os contrastes permitem que tomemos mais conhecimento sobre nós mesmos, assim como no desenho da abelha. Por exemplo, ao ver um ato de injustiça percebo que a justiça existe, e a partir disso posso chegar a certas conclusões: ela deve ser algo diferente daquilo que estou vendo; se ela existe naquela ação, também deve estar presente nas minhas ações, porque eu também realizo ações no mundo; as minhas ações são mais justas ou injustas? Perceba que num mundo hipotético onde reina a justiça perfeita, jamais saberíamos se somos justos ou injustos, não há contraste.
Esse conhecimento nos ajuda a tomar posse de nós mesmos, adquirirmos consciência.
E essa consciência nos permite nos posicionar melhor no mundo, tomar melhores decisões, ser fiéis aos nossos valores, agir de acordo com o que pensamos e com o que sentimos. Em outras palavras, sair da zona de conforto é a porta de entrada que nos leva a um caminho de unidade em nós, um caminho com mais coerência.
Platão dizia que Deus é o Uno, logo, todo caminho que leva à Unidade estaria nos aproximando de Deus. Nesse sentido, quanto mais desenvolvemos a coragem - que significa “ação do coração” - para sair das nossas zonas de conforto físicas, emocionais e mentais, mais próximos estaríamos desse mistério que é Deus.
‘‘A coragem é a primeira das qualidades humanas porque garante todas as outras.— Aristóteles
3. A natureza nos quer mais sábios
Ficamos tentando evitar as ondas, mesmo sendo isso uma tarefa impossível.
As ondas na praia continuam vindo sem cessar, uma atrás da outra, nos forçando a entrar em contato com a água, nos fazendo entrar em contato com o contraste do nosso corpo quente com a água fria, a sair da nossa zona de conforto, a ampliar a consciência.
Não seria o mesmo para os problemas e obstáculos que nos aparecem um atrás do outro na vida?
É como se a natureza se usasse das ondas do mar para nos ensinar algo. Cada vez que uma onda estoura em nós, nos forçando a entrar em contato com ela, é como se ela estivesse gritando “se mova!”. Se mover pra onde? Para dentro da água ou junto das ondas. Podemos pular as ondas se elas forem pequenas, mas não há outra alternativa se elas forem maiores.
Ao escolher nos mover para dentro da água, ainda sentimos as ondas passando por nós, porém, elas já não nos afetam tanto. Não há o choque violento que nos arrasta. É o mergulho para dentro de nós mesmos, para esse autoconhecimento que vai nos fazer tomar melhores decisões, pensar melhor, sentir melhor, agir melhor, e, consequentemente, beneficiar tudo ao nosso redor.
‘‘Conhece-te a ti mesmo e conhecerás o Universo.— Templo de Apolo em Delfos, na Grécia Antiga
Ao escolher nos mover junto das ondas, precisamos estar preparados, saber nadar ou estar bem equipados com uma prancha. O sábio é aquele que sabe nadar, flui com as ondas como se fossem um só e chega na praia sem muita dificuldade. Porém, ainda não somos sábios, e precisamos de um equipamento adequado para fluir com a vida: nossas virtudes.
Nossas virtudes são o equipamento que está sempre conosco, mas que deixamos de lado e temos dificuldade de encontrar quando mais precisamos. Elas são como os óculos que colocamos sobre a cabeça e procuramos em vão por toda parte bem na hora em que temos de enxergar algo. É preciso primeiro encontrar os óculos que estão em nós, e então usá-los.
As virtudes são nosso potencial, nossas forças espirituais, sempre presentes, mas nem sempre atuantes, que nos habilitam a vencer os desafios lançados pela vida.
‘‘A virtude capacita os indivíduos humanos a realizarem ações nobres.— Aristóteles
É como se, por meio das ondas, a natureza quisesse que desenvolvêssemos, depois da coragem, inteligência. A palavra inteligência tem sua origem no latim e significa “escolher dentre”, ou seja, discernir. Ela nos oferece a oportunidade de tomar uma atitude a cada onda que nos envia: podemos nos mover ou sofrer ao ficar imóveis. Escolhemos o sofrimento de sermos tirados da nossa zona de conforto pela vida repetidamente enquanto não aprendemos a discernir o real do irreal, o eterno do transitório.
A natureza nos estimula a discernir, mas não faz isso por nós. Temos o livre arbítrio.
A natureza nos quer mais sábios.
4. Motivação oculta
E por que entramos no mar?
Parecem haver muitos motivos. Com certeza, se perguntássemos para cada pessoa na praia receberíamos muitas respostas diferentes: “porque é divertido, o mar tá aí pra gente curtir!”, “porque eu amo o mar! bom mesmo é ter a família reunida aqui”, “porque no mar eu posso andar de lancha, comer casquinha de siri e tomar uma cervejinha”, e assim por diante.
Todas essas são percepções muito válidas do ponto de vista de quem está experimentando o mar. Cada um que entra em contato com o mar tem seu próprio objetivo ao se relacionar com ele.
Um relacionamento, porém, é composto de dois agentes. Será que o mar não tem seu próprio objetivo ao se relacionar conosco?
Será que ao jogar ondas e mais ondas sem parar ele não quer que façamos um mergulho profundo e saiamos do outro lado mais purificados?
Será que ao jogar as ondas grandes e fortes ele não quer que nos aproximemos mais rápido da terra? Desse ponto em que as ondas já não nos atingem mais?
Num relacionamento duradouro normalmente temos objetivos em comum. Será que se tivéssemos o mesmo objetivo que o mar, o período que passamos nele não se tornaria mais fluído? Sem tantas angústias e sofrimentos?
Ao unirmos os nossos objetivos com os objetivos do mar não estaríamos navegando lado a lado num fluxo contínuo em direção a praia?
Plotino, filósofo neoplatônico, dizia:
‘‘Esforço-me para reunir o que há de Divino em mim ao que há de Divino no Universo.— Plotino
Parece que existe uma força da natureza que empurra tudo para a união, seja para dentro, buscando essa unidade em nós, seja para fora, buscando essa unidade com o que nos é externo. É como se algo profundo em nós, algo permanente, quisesse que tomássemos consciência da sua existência através do seu contraste: o transitório. E essa nossa parte permanente, essa porção do Uno em nós, nos motivasse a nos unir com a porção do Uno em tudo. Penso que essa força que nos empurra faz isso por muito tempo, provavelmente por eras, pois não parece ser uma tarefa fácil.
Essa motivação oculta seria esse impulso que nos faz entrar na vida, mesmo que mentalmente acabemos por criar outros objetivos que não necessariamente são os objetivos da Vida para nós.
É através da saída da nossa zona de conforto, do contato com os contrastes, com os diferentes, que ela nos ensina a mergulhar fundo em nós mesmos e nos mostra a direção que devemos seguir. Ao nos conhecermos, descobrimos nossas virtudes e temos a oportunidade de ter domínio sobre nós mesmos e de navegar nesse mar turbulento.
Conforme nos dominamos, adquirimos mais condições de nos unir ao objetivo da vida. E assim fazendo, nos aproximamos do mistério do Uno e não mais experimentamos sofrimento.
Sidarta Gautama, o Buda, falava sobre isso em suas 4 Nobres Verdades:
‘‘1. A dor existe
2. A causa da dor é o desejo pelo transitório
3. É possível superar a dor
4. A dor é superada através do Nobre Óctuplo Caminho: Retas opiniões, Retas intenções, Retas palavras, Reta conduta, Retos meios de vida, Reto esforço, Reta atenção e Reta concentração — Buda
Ao aprendermos a navegar, mesmo um pouco que seja, podemos auxiliar a outros que estão sendo arrastados, como quem lança uma corda ao náufrago sendo levado pela correnteza. As virtudes são sempre altruístas, são forças do ser humano movidas pela vontade de ser uma pessoa melhor para si mesmo e para o mundo. A vontade nos impulsiona a atuar com bondade, justiça, respeito, paciência, generosidade, etc; e a fazermos isso conosco, com os outros e com todas as coisas.
As ondas nos empurram numa única direção: terra firme, onde podemos nos dirigir por nós mesmos. Em terra, não precisamos mais das ondas para nos ensinar sobre os contrastes. Até lá, necessitamos do mar para aprender a fluir com seu fluxo e chegar em terra firme. Impulsionados pela força da nossa vontade, vencemos a horizontalidade do mar e conquistamos a verticalidade da terra, chegamos à praia e podemos caminhar com convicção, carregando em nosso ser o sal que o aprendizado com as ondas do mar nos proporcionou.